quarta-feira, 10 de abril de 2013

Almada... o menino


E a fé com que inventou o seu futuro...


"A flor
Pede-se a uma criança: Desenhe uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém.
Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa direcção, outras noutras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase que não resistiu.
Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era de mais.
Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: uma flor!
As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor!
Contudo, a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor!"
 




"Mãe!
Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei!
Traz tinta encarnada para escrever estas coisas! Tinta cor de sangue, sangue verdadeiro, encarnado!
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens! Eu vou viajar. Tenho sede! Eu prometo saber viajar.
Quando eu voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um. Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me a teu lado. Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei, tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.
Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado! Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa. Eu também quero ter um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!
"
 (Almada Negreiros, A Invenção do Dia Claro, 1921)


José Sobral de Almada Negreiros, nasceu a 7 de Abril de 1893, em São Tomé e Príncipe, e faleceu em Lisboa, a 15 de Junho de 1970, com 77 anos.
Artista multifacetado, símbolo da arte moderna portuguesa, foi escritor, poeta, dramaturgo, desenhador, caricaturista-humorista, escultor, pintor.
Colega e amigo de Fernando Pessoa, e de Mário de Sá Carneiro, do grupo do Orpheu, impossível de ter continuadores pois nunca se pede bis pela abertura, como ele próprio dizia(*).

Dedicou a maior parte da sua vida à escrita. Em A Invenção do Dia Claro, de 1921, o meu único livro(*), como lhe chamou em 1953, Almada fala de um filho pródigo que parte em busca de uma vida diferente, junto do saber livresco e civilizacional, mas regressa ao ambiente materno, ciente do seu engano, apontando para a exigência da verdade.
Simultaneamente poesia, prosa e arte poética, é a obra que melhor retrata a face da recuperada ingenuidade infantil de Almada.
Escolhendo modelos que visitam a minha memória(*), O menino entre os doutores(*), como lhe chamava Fernando Pessoa, começou a pintar Na idade em que ainda nada se pinta...; Não era por alegria, foi por necessidade dela.(*)
É sua a pintura mais reconhecida do grande poeta, o retrato do seu amigo ávido do amigo(*), Fernando Pessoa.
Do artista, que do convívio social dizia: A pessoa de arte é a que convive com o maior número de gente diferente, porque não reconhece em cada um a sua classe social apenas.(*)
Almada, para quem alguma boa recordação da infância seria:
Uma. A fé com que inventei o meu futuro.(*)

Ao longo deste ano estão previstos inúmeros eventos que assinalam os 120 anos do seu nascimento.
(*) In "DIGA-NOS A VERDADE", Diário de Lisboa, p.9, Quarta-feira/28 de Janeiro de 1953, nº 10832, ano 32 (Entrevista biográfica conduzida por E.C.)

 

Mais:
Centro de Arte Moderna (CAM)/Gulbenkian: José de Almada Negreiros - Retrato de Fernando Pessoa.
Wikipedia: Diário de Lisboa

(Maria, 10-04-2013)

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