E a fé com que inventou o seu futuro...
"A florPede-se a uma criança: Desenhe uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém.Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa direcção, outras noutras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase que não resistiu.Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era de mais.Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: uma flor!As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor!Contudo, a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor!"
"Mãe!Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei!
Traz tinta encarnada para escrever estas coisas! Tinta cor de sangue, sangue verdadeiro, encarnado!Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens! Eu vou viajar. Tenho sede! Eu prometo saber viajar.
Quando eu voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um. Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me a teu lado. Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei, tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.
Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado! Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa. Eu também quero ter um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!"
(Almada Negreiros, A Invenção do Dia Claro, 1921)
José Sobral de Almada Negreiros, nasceu a 7 de Abril de 1893, em São Tomé e Príncipe, e faleceu em Lisboa, a 15 de Junho de 1970, com 77 anos.
Artista multifacetado, símbolo da arte moderna portuguesa, foi escritor, poeta, dramaturgo, desenhador, caricaturista-humorista, escultor, pintor.
Colega e amigo de Fernando Pessoa, e de Mário de Sá Carneiro, do grupo do Orpheu, impossível de ter continuadores pois nunca se pede bis pela abertura, como ele próprio dizia(*).
Dedicou a maior parte da sua vida à escrita. Em A Invenção do Dia Claro, de 1921, o meu único livro(*), como lhe chamou em 1953, Almada fala de um filho pródigo que parte em busca de uma vida diferente, junto do saber livresco e civilizacional, mas regressa ao ambiente materno, ciente do seu engano, apontando para a exigência da verdade.
Simultaneamente poesia, prosa e arte poética, é a obra que melhor retrata a face da recuperada ingenuidade infantil de Almada.
Escolhendo modelos que visitam a minha memória(*), O menino entre os doutores(*), como lhe chamava Fernando Pessoa, começou a pintar Na idade em que ainda nada se pinta...; Não era por alegria, foi por necessidade dela.(*)
É sua a pintura mais reconhecida do grande poeta, o retrato do seu amigo ávido do amigo(*), Fernando Pessoa.
Do artista, que do convívio social dizia: A pessoa de arte é a que convive com o maior número de gente diferente, porque não reconhece em cada um a sua classe social apenas.(*)
Almada, para quem alguma boa recordação da infância seria:
Uma. A fé com que inventei o meu futuro.(*)
Ao longo deste ano estão previstos inúmeros eventos que assinalam os 120 anos do seu nascimento.
(*) In "DIGA-NOS A VERDADE", Diário de Lisboa, p.9, Quarta-feira/28 de Janeiro de 1953, nº 10832, ano 32 (Entrevista biográfica conduzida por E.C.)
Mais:
Centro de Arte Moderna (CAM)/Gulbenkian: José de Almada Negreiros - Retrato de Fernando Pessoa.
Wikipedia: Diário de Lisboa
(Maria, 10-04-2013)
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