sábado, 22 de agosto de 2015

Querido O'Neill...


 "Entre o viver e o sonhar / Há uma terceira coisa. / Adivinha-a."
(António Machado)

"A minha vida, lisa, aplastada, chata como tem transcorrido, só pode ser inventada. E, seguramente, foi assim que eu passei a vida: a inventá-la."
(Alexandre O'Neill in Memórias - "Uma Coisa em Forma de Assim")

Imagem: "Vida de Girassol"

Hoje andei passeando pelas tuas memórias, pela tua solidão:
"A solidão é uma situação prometedora. Promete o quê e a quem?"

Pelo teu exílio interior:

"Muitos escritores e artistas escolheram o exílio interior como meio de preservarem a sua integridade frente a uma sociedade indiferente ou hostil à participação... O exílio interior não é, propriamente, a morte civil... O exílio interior é, antes, um voluntário isolamento... Não se trata, a bem dizer, de uma fuga, mas, antes, de um afastamento para dentro, para o interior." 

Aprendendo contigo a Esperar o Inesperado:

"Esperar o inesperado é uma expectativa que se abre sem limites definidos, sem trajectória, sem apostar seja no que for. A esperança não tem nada a ver com este exercício permanente de disponibilidade. Nem, propriamente, a surpresa. Esperança e surpresa estão demasiado contaminadas de humano para poderem participar nesta disponibilidade para o que vier de um lá que nem sabemos onde se situa, onde terá vigência. E, no entanto, a busca do inesperado impõe-se... Foi Heraclito quem muito bem formulou esta imposição: «Se não buscas o inesperado não o encontrarás, que é penoso e difícil encontrá-lo.». Portanto, não esperar, mas buscar, o que implica... um moto próprio."
E a Desaprender:

"Quem não tiver uma curiosidade encarniçada por tudo o que o rodeia, quem alguma vez supuser que dá mais do que recebe, está perdido para o tal desaprender que repõe em causa ideias e formas. É que, depois de se saber tudo, estará sempre tudo por se saber. O criador deve ter a consciência de que, por melhor que crie, não consegue mais do que aproximações a uma perfeição que lhe é inatingível. Ele é um derrotado à partida. Sabê-lo e, apesar de tudo, prosseguir, é o seu único e legítimo motivo de orgulho. O resto é bilros.
Há uma altura em que, depois de se saber tudo, tem de se desaprender. Sucede assim com o escrever. Com o escrever do escritor, entenda-se. Eu, provavelmente poeta, estou a aprender a... desaprender. E para quê e como se desaprende? Para deixar de ronronar, para que o leitor, quando o nosso produto lhe chega às mãos, não exclame, satisfeito ou enfastiado: «- Cá está ele!»
Na verdura dos seus anos, a preocupação do escritor parece ser a da originalidade. Ser-se original é mostrar-se que se é diferente. E as pessoas gostam das primeiras piruetas que um sujeito dá. E o sujeito gosta de que as pessoas vejam nele um talento.
Atenção, vêm aí as receitas, as ideias feitas, os passes de mão, os clichés, os lugares selectos ou, mais comezinhamente, os lugares comuns. O escritor está instalado. Revê-se na sua obra. Começa a abalançar-se a voos mais altos, a mergulhos mais fundos. É a intelectualidade que o chama ao seu seio, o público que o põe, vertical, nas suas prateleiras. Arrumado.
Quase sem dar por isso, o escritor acomodou-se e tornou-se cómodo, quando propendia, nos seus verdes anos, a incomodar-se e a tornar-se incómodo... Vai a colóquios, celebrações, congressos. Ganha prémios... Está de tal modo visível que já ninguém dá por ele. É o escritor.
Se as coisas continuarem indefinidamente assim, o escritor pode ser alcandorado... já velho ou já morto o escritor. Pedra campal sobre o assunto.
Este é o exemplo do escritor autófago. Comeu-se a si próprio, melhor dizendo, comeu a sua própria imagem. Não por aquela devoração que o acto de criar traz consigo, mas por excesso de confiança na pessoa literata que projectou, como um halo, para todos os lados da sua figura. 
E de que outro modo poderia ser?
Para não falar de modéstia - e afastando, desde já, qualquer vislumbre de proselitismo - eu arriscaria dizer que estará condenado a si mesmo todo o escritor que não prestar mais atenção aos outros e às coisas deste mundo do que à sua - sem dúvida importante, sem dúvida decisiva - preciosa personalidade. O segredo da abelha é esse."  
 
(Alexandre O'Neill - Uma Coisa em Forma de Assim. Ed. Presença, Lisboa: 1985.)
Poeta e escritor, Alexandre O'Neill nasceu em Lisboa a 19 de Dezembro de 1924. Faleceu a 21 de Agosto de 1986. O poeta que gostava de jogar com as palavras e brincar a sério com a língua portuguesa.
Obrigada, O'Neill _/\_
Maria, 21-08-2015